Mônica Vermelha

Pesquisar este blog

sexta-feira, 7 de março de 2014

A DEPENDÊNCIA ESTRUTURAL

No sentido de melhor refletir sobre o papel do estado, vale introduzir a reflexão proposta por alguns autores a respeito das relações entre o estado e as classes sociais. Nesta perspectiva julgamos conveniente introduzir aqui as reflexões de Lindblom (1979), Przeworski (1989) e Offe (1985), sobre as relações entre o estado e o capital nas democracias capitalistas contemporâneas. No seu livro Política e Mercados, Charles Lindblom (1979) argumenta que a conjugação dos elementos da democracia com os do mercado aponta para a inevitabilidade de que, não obstante o fato de que a democracia pressupõe algum controle popular sobre as decisões públicas, o que acaba prevalecendo é a influência da classe empresarial sobre tais decisões nas sociedades capitalistas, onde as classes populares ou trabalhadoras têm reduzidas fortemente as suas chances de fazerem valer os seus interesses.
Este autor argumenta que em função da sua posição privilegiada, que se expressa principalmente no controle exercido pela mesma sobre as decisões de investimento, a comunidade empresarial assume uma posição especialmente vantajosa na promoção dos seus interesses, visto que a mesma pode, no limite, ameaçar a própria estabilidade do governo através da redução dos seus investimentos, o que implicará desemprego, baixos salários etc. O suposto aqui é o de que o bom desempenho das empresas significa maior desenvolvimento e dinamismo econômico e maior grau de emprego, que são condições favoráveis à estabilidade governamental. Nessa perspectiva o bom desempenho das empresas privadas se transforma num "interesse público" e os empresários adquirem status de "funcionários públicos" na medida em que o desenvolvimento de suas atividades se torna essencial à própria dinâmica das sociedades capitalistas democráticas. O empresariado se acha em condições, portanto, de reivindicar "um mínimo de vantagens, na falta das quais os incentivos não conseguem motivar o desempenho empresarial" (Lindblom, 1979, 204) Tais considerações evidenciam a necessidade do governo reconhecer formalmente a importância e conseqüente poder de influência da classe empresarial. Para isso os empresários "precisam apenas mencionar o custo de fazer negócios, o estado da economia, a dependência da estabilidade e crescimento da economia para com seus lucros e perspectivas de vendas - e simplesmente prognosticar, e não ameaçar, que conseqüências prejudiciais se seguirão a qualquer recusa em atender-lhes as exigências." (Linblom, 1979, 210) Além desse reconhecimento formal, existem ainda os mecanismos de acesso e influência informais pelos quais os empresários, mais uma vez, têm acesso privilegiado para agir em favor do prevalecimento dos seus interesses. Lindblom ressalta que os empresários gozam de uma vantagem tríplice, visto que eles têm às mãos "fontes extraordinárias de recursos, organizações à sua disposição e acesso privilegiado ao governo". O primeiro item refere-se à ampla liberdade que lhes é dada na utilização dos recursos, bem como à enorme superioridade do montante de recursos financeiros que eles podem dispender em relação às outras organizações, especialmente de trabalhadores. No que diz respeito à organização, que é essencial à participação política, enquanto a mesma implica custos enormes para outros atores, para as empresas ela é algo já dado, posto que é condição da sua própria existência e que, em vez de criar outras organizações, o empresário pode valer-se daquela de que ele já dispõe. Este autor chama a atenção ainda para a facilidade de acesso ao governo desfrutada pelos empresários que, graças à sua posição privilegiada, são conhecidos e reconhecidos pelos funcionários públicos, que lhes dedicam atenção especial e se esforçam para atender-lhes as solicitações. Em contraposição Lindblom mostra-nos que a posição dos sindicatos trabalhistas no que tange à sua capacidade de influenciar as políticas públicas é desproporcionalmente inferior, visto que os mesmos não gozam dos mesmos privilégios e em virtude também da política crescentemente adotada de "colaboração entre o sindicato e a gerência a fim de evitar os conflitos e, em lugar disso, elevar os salários e melhorar as condições de trabalho..." (Lindblom, 1979, 224) O argumento final deste autor aponta para a influência exercida pela ideologia empresarial na "conformação das vontades individuais", através dos meios de comunicação de massa pelos quais difundem mensagens que os legitimam e que fomentam a unidade e o progresso ao invés do conflito. Escola, família e igreja são outros instrumentos que colaboram no sentido de conformar as vontades individuais, na medida em que reforçam o status quo vigente. De acordo com este autor, a influência destes organismos sobre a formação do indivíduo é algo incontestável e, em maior ou menor grau, implica que grande parte dos indivíduos acaba incorporando como seus, interesses que lhe são alheios, ou então instaura uma tal confusão que ao indivíduo ficará difícil distinguir qual é realmente o seu interesse. Neste sentido, o que acaba prevalecendo é a ilusão de prevalecimento do interesse comum e do controle popular; posto que os indivíduos são coagidos em suas vontades, que acabam sendo determinadas em grande medida pela ideologia empresarial que conforma as vontades e interesses individuais de acordo com os seus próprios. Nas palavras do autor, "é difícil ao cidadão que desfruta liberdade recordar-se de como é desigual a competição de idéias, e como os governos ainda ficam aquém de realizar uma libertação mais ampla da mente do homem a fim de tornar realidade um grau de controle pelo povo que só, então, seria possível." (Lindblom, 1979, 241) De acordo com esta argumentação, o segmento empresarial consegue doutrinar grande parte da população, fazendo com que a mesma aceite e/ou adote como suas as vontades, crenças e atos da classe dominante. A conclusão do autor é que "devido à existência de classes, o controle pelo povo é mutilado, embora não paralisado, pela circularidade" (Lindblom, 1979, 259) e ainda, o empresariado consegue doutrinar a população naquele aspecto que mais lhe interessa e que diz respeito aos fundamentos da ordem político-econômica. Embora nos pareça excessivamente determinístico na medida em que não deixa nenhum espaço para a ação livre dos indivíduos e parece pressupor que a hegemonia da classe empresarial, no que tange aos grandes "issues", se reproduz independentemente dos outros interesses, a argumentação desenvolvida por Lindblom teve o mérito de apontar aquelas que são efetivamente as causas da dependência estrutural do estado capitalista em relação ao capital e de demonstrar quão acentuadamente formais podem ser a liberdade e a democracia nestes contextos. Adam Przeworski (1989), embora compartilhando em grande parte do argumento Lindblomiano, vai lançar mão da teoria dos jogos e da teoria da hegemonia de Gramsci para mostrar que, nas sociedades que pretendem ser democráticas, a classe hegemônica vai se deparar com a necessidade de negociar com as outras classes a realização, em alguma medida, de outros interesses que não os seus próprios, como condição para a conservação e reprodução da sua própria hegemonia e condição também para que a democracia não seja uma mera figura de retórica. Desenvolvendo uma reflexão sobre as relações entre capitalismo e democracia Przeworski vai reforçar a tese de que "o capitalismo é uma forma de organização social em que toda a sociedade depende das ações dos capitalistas." (Przeworski, 1989, 166) Essa posição privilegiada se explica por dois motivos: pela impossibilidade dos produtores imediatos sobreviverem sozinhos, visto que a produção nas modernas sociedades capitalistas é orientada para a troca, e pelo controle, detido pelos capitalistas, sobre as decisões de investimento. Um aspecto fundamental dessa relação é que, na sociedade capitalista, as decisões de investimento afetam diretamente "a continuidade da produção, do emprego e do consumo" que se configuram como interesse coletivo. Para assegurar a realização desse "interesse coletivo", entretanto, há que se garantir o interesse do capitalista: o lucro, que é condição necessária para o investimento, que por sua vez, é condição para o aumento dos empregos, dos salários e do próprio desenvolvimento social. Segundo as palavras do autor: "em um sistema capitalista, os capitalistas encontram-se em uma posição ímpar: representam os interesses universais futuros enquanto os interesses de todos os demais grupos aparecem como particularistas e, portanto, prejudiciais ao desenvolvimento futuro. Toda a sociedade é estruturalmente dependente das ações dos capitalistas." (Przeworski, 1989, 168) Recorrendo a Gramsci, Przeworski entretanto argumentará que a hegemonia de uma classe social requer para a sua continuidade que interesses de outros grupos sejam realizados em alguma medida e, nestes termos este autor irá dizer da necessidade do compromisso democrático, no sentido de que os setores populares não sejam completa e sumariamente excluídos da vida política . Aderindo também à idéia da dependência estrutural do estado em relação ao capital Claus Offe (1985) vai considerar que para equilibrar as relações entre capitalistas e trabalhadores, seria necessário que os primeiros abrissem mão do seu monopólio sobre as decisões de investimento, o que significaria retirar-lhes "o direito de não investir, que constitui a fonte do poder social do capital privado." (Offe, 1985, 267) Segundo Offe se os empresários continuam detendo o monopólio sobre as decisões de investimento, estará configurada uma situação privilegiada deste segmento, na medida em que as maiores renúncias, nos momentos de negociação salarial por exemplo, serão exigidas dos trabalhadores, e mais uma vez os interesses da classe empresarial estarão sendo privilegiados, posto que menos onerados. Estes autores, ao demonstrarem que o estado democrático-liberal tem uma relação de dependência para com o setor empresarial, revelam quão crucial é o problema da liberdade e da autonomia do estado nestas sociedades - e quão menores são as chances dos trabalhadores de influenciarem as decisões públicas - visto que, como condição para sua própria sobrevivência, o estado necessariamente terá que ser especialmente sensível aos interesses empresariais.

Nenhum comentário: